segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Jorge Luís Borges e a Narrativa Fantástica













Dorine Cerqueira









O fim primacial da narrativa fantástica é mostrar a “irrealidade da realidade”, visto que
tudo quanto não traga a marca do real e do verossímel aborrece o leitor dos nossos dias. O
fantástico e o real devem estar de tal maneira entrelaçados no argumento, que se torna
praticamente impossível isolar um do outro. Ray Bradbury (organizador de uma excelente
antologia de contos fantásticos) adverte que um contador de histórias fantásticas não pode
aspirar a outra coisa que não seja induzir o leitor à sensação da “irrealidade da realidade”.

Segundo Todorov ( Introduction à la littérature fantastique, 1970, p. 29),



“Le fantastique c’est l’hésitation éprouvée par un être qui ne

connaît que les lois naturelles, face à un événement en apparence

surnaturel.



(O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece

as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural)



Os dois clássicos da narrativa fantástica são: o alemão Hoffman e o norte-americano Poe.

Para o poeta e ensaísta José Paulo Paes, o conto fantástico brasileiro está representado por três
escritores de três épocas diversas e de três diversas orientações estéticas: o romântico Álvares de
Azevedo (“Bertram”), sofisticado hoffmaniano; o realista Aluísio Azevedo (“Demônios”), adepto
do cientificismo que empolgou nossos escritores em fins do século XIX; e o moderno Carlos
Drummond de Andrade (“Flor, telefone, moça”), mestre na arte de fundir o humorístico, o funéreo
e o prosaico num amálgama de melancólico lirismo (PAES, 1960, p. 14). Podemos incluir também
entre as narrativas fantásticas alguns contos do realista Machado de Assis (como “Mariana”, “O
espelho”, entre outros). O contemporâneo mineiro Murilo Rubião (“O ex-mágico da Taberna
Minhota” e outros), leitor confesso de Cervantes, Kafka e Machado de Assis, desenvolveu uma
vertente literária “que só alcança plenitude na obra de grandes escritores”. Além dos já citados,


temos ainda os argentinos Jorge Luís Borges e Julio Cortázar e, em alguns aspectos, o cubano Alejo
Carpentier, considerados dentre outros como representantes da contemporânea literatura fantástica
da América Latina (MASINA, 2001, p. 5). Esse gênero mágico ou fantástico “só explodiria para a
glória” na década de 1960, com o colombiano Gabriel García Márquez, com seu Cien años de
soledad.



Na obra do escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) há duas premissas fundamentais:
“primeiro, o caos que governa o mundo; e segundo, o caráter de irrealidade de toda a literatura”
(Apud JOZEF, 1974, p. 43). Para Borges, dentro desse caos, o homem está perdido como em um
labirinto, e afirma que “la irrealidad es condición del arte”. Ele se compraz nessa troca incessante
de ficção e realidade, até confundir uma com a outra. A criação literária passa a ser compreendida
como um processo de transfiguração, e seu resultado é “uma plenitude de sugestões e associações
na alternância do fantástico e do real” (Ibid., p. 46). A imagem do labirinto é comum a Borges e
Cortázar. As metáforas do tempo, do espelho e do labirinto ajudam a decifrar aspectos
fundamentais em Borges. Ele recria o mundo por meio da multiplicação lingüística, que produz
uma “magia da linguagem”. O homem se torna imortal (“El inmortal”) é através da escrita, da
literatura. É somente na escritura que podemos lutar contra o caos, que é o nosso mundo. Borges
utiliza assim as figuras do labirinto, do eco, do espelho e da biblioteca como “portas-passagens”
que levam o leitor a “re-descobrir” a realidade em que vive, numa constante intertextualidade. Sua
literatura contém um mise en abyme: a perspectiva infinita de textos que remetem a textos, que
remetem a textos... como um caleidoscópio, e sua literatura é considerada “una de las más
universales y asombrosas del siglo XX”.

O fantástico mistura-se à essência argentina e ao estímulo emocional. A emoção leva-o ao
nacional; a metafísica ao universal. Sua concepção de labirintos, espelhos etc. representa a
multiplicidade de caminhos humanos. Dessa forma, no conto “El inmortal”, de El Aleph, descreve a
busca da Cidade dos Imortais pelo personagem, junto à qual corria um rio cujas águas dava a
imortalidade a quem dela bebesse.

Para Borges, o tempo é um eterno retorno, e por isso não se pode afirmar que este
mundo é real, mas um simulacro, uma máscara. Nosso mundo é um caos porque não passa
de um simulacro, por isso não podemos decifrá-lo. Sendo assim, o homem que nele habita
é também um simulacro, pois repete os mesmos atos mecanicamente há séculos. É o “mito
do Eterno Retorno” de Nietzsche. Por ser prisioneiro do tempo, o eu, que é Borges, só se
pode experimentar no fluir deste, que devora toda a realidade:




El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que

me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo

soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente,

soy Borges (Nueva refutación del tiempo).



Nosso tempo remete o homem a essa solidão irremediável. Prisioneiro do tempo que
lhe impede de alcançar o absoluto, como em El Aleph, o homem, diante do universo, se
encontra só e isolado; está condenado a um contínuo interrogar-se sem esperança de
encontrar a resposta (JOZEF, 1971, p. 219-220).

Herdeiro de uma cegueira hereditária, o escritor, gradativamente, vai ficando cego (aos
55 anos) e começa a usar a imaginação para poder “enxergar”. Ele criou sua poética a partir
da memória visual de imagens e de leituras armazenadas antes de sua perda da visão real
que, aos poucos, se tornou opaca, invisível. A expressão “ver com os olhos da imaginação”
é retirada de um verso da Divina Commedia (Purgatorio) de Dante: “Poi piovve dentro a
l’alta fantasia”(chove dentro da alta fantasia). A chuva, produzindo uma imagem pouco
nítida, forma uma espécie de cortina que embaça a visão. Daí assumir o papel de um ator
na ação imaginária, produzindo uma obra literária feita de ecos e espelhos, calcada na
fantasia. Passaria então a “enxergar” o que um homem de visão pensa que vê, e o que o
cego não parece poder “enxergar”, mas pode construir sua poética pela imaginação e pela
linguagem (FERREIRA, 1996, p. 313-314). A vida inventada faz parte da vida vivida, que
tem relação, de um certo modo, com o personagem cego (Jatobá), da novela da TV Globo
América, na excelente interpretação do ator Marcos Frota: “Os poetas, como os cegos,
podem ver na escuridão” (Choro Bandido, de Chico Buarque e Edu Lobo). O crescimento
da cegueira faz Borges optar pela poesia e narrativas mais curtas.

Uma nova abertura do mundo narrativo borgeano nos leva até “Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius”, o retrato da criação de um mundo por meio da linguagem, conto que abre El
jardin de los senderos; e em seguida Ficciones, como outro ponto de partida. O mundo de
Tlön se afirma como uma imagem inversa de nosso mundo real, imagem em um espelho
imaginário, em que as coisas se duplicam. Borges não só segue sutilmente as leis não
escritas de toda literatura fantástica, mas realiza magistralmente seus próprios postulados
de “El arte narrativo y la magia”. Para Emil Volek, Tlön é “la primera irrupción del mundo
fantástico en el mundo real”.


O mais forte do realismo borgeano é o aspecto “surrealista”. Para Borges, “la literatura
no es otra cosa que un sueño dirigido”. Tlön se converte em uma sátira total. Disso deriva
a característica estrutural de Ficciones e de El Aleph. Remete à noção de espaço e de
infinito, com alusão a contos de Edgar Allan Poe e com detalhes realistas-fantásticos. El
Aleph é uma inversão: paródia da Divina Comédia, de Dante, com personagens literários,
como Beatriz. Esta situação, de infinitas e imortais permutações, não só termina por
resgatar todo valor da imortalidade mas a converte em metáfora do inferno. Aleph “es el
nombre de la primera letra del alfabeto de la lengua sagrada”.





BIBLIOGRAFIA



FERREIRA, Eliane Fernanda C. “O (In) visível imaginado em Borges”. In: Pedro Pires
Bessa (Org.). Riqueza Cultural Ibero-Americana. Campus de Divinópolis-UEMG, 1996.

JOZEF, Bella. “Borges: linguagem e metalinguagem”. In: O espaço reconquistado.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1974.

___. História da literatura hispano-americana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971.

MASINA, Lea. “Murilo Rubião, o mágico do conto”. In: O pirotécnico Zacarias e outros
contos escolhidos. Porto Alegre: L & PM, 2001.

PAES, José Paulo. “Introdução”. In: Maravilhas do conto fantástico. São Paulo: Cultrix,
1960.

TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris, Seuil, 1970.

VOLEK, Emil. “Aquiles y la Tortuga: Arte, imaginación y realidad según Borges”. In:
Cuatro claves para la modernidad. Analisis semiótico de textos hispánicos. Madrid:
Gredos, 1984.



http://poemamisterio.blogspot.com/2008/07/jorge-lus-borges-e-narrativa-fantstica.html

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A palavra e o silêncio (a estratégia do signo)


Francisco Goya - La Maja desnuda
Museu do Prado - Madri


EM TORNO DE UM TEXTO TEÓRICO DE
A. RAMOS ROSA
José Augusto Mourão (UNL-DCC)



A palavra e o silêncio (a estratégia do signo)


La parole vraie, celle qui signifie, qui rend enfin présente "l´absence de tout bouquet" et délivre le sens captif dans la chose, elle n´est, au regard de l´usage empirique, que silence, puisqu´elle ne va pas jusqu´au nom commun. Merleau-Ponty

O desvendamento e a aletheia. Esta e o logos são uma
e a mesma coisa. Heidegger

À l´ensemencement de la vague et de l´onde, comme au commencement du monde, est l´écho du tohu-bohu. M. Serres


No princípio não existe o silêncio, não existe a palavra: é o tohu wabohu tehom que é tumulto e vazio, abismo e trevas. A natureza não canta, a noite não se cala. Do começo que o homem forja a sua linguagem. Vitória do homem sobre as coisas, nomeação do real, e a seguir apelo, ex-posição e posicionamento do outro. Daí começou o homem a aprender a conjugar as palavras: combate como o de dois corpos que se procuram, de duas vozes alternadas que se chamam. A palavra tornou-se diálogo. E é então que a palavra ensina o silêncio.

É verdade que o pensamento ocidental não suporta, não suportou nunca o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor. Falta-lhe uma tópica e uma económica (1). Ora é daí que Ramos Rosa fala: do vazio, como condição do acontecimento da palavra poética.

"...movimento criador...turbilhonante negatividade, ou seja, ao vazio da criação".

" A palavra nasceu do adensar-se do silêncio, dele e contra ele...".

A palavra é então um animal vivo (ciclo do cavalo), um lugar de combate contra si mesma - do silêncio e contra ele. Encenação de um gesto, um acto (ins-crever) e virtualização do seu objecto: o corpo. A escrita transporta os traços de morte da sua efectuação como um nascituro. Donde o falar-se de "turbilhonante negatividade". Do negativo duma diferença, como diria P. Beauchamp: o escrito, letra estreita e vazia, define-se como o continente que não contém nada (2).

No princípio não existe o silêncio, não existe a palavra. Não, no princípio não era o verbo: o verbo vem onde é esperado. Escreve-se antes de mais através de uma vaga de música, uma vaga de fundo que vem do barulho de fundo, que vem de todo o corpo talvez, e talvez do fundo da alma ou da porta da sala, ou dos últimos amores, portadora do seu ritmo complicado, do seu tempo simples, das suas linhas melódicas, flutuação doce, queda partida. Não se pode apertar a sua pena sem que isso, que não tem verbo ainda, voe. No começo é o canto (3). O que quer também dizer que não se entra no mundo da significância senão através da escuta dessa "turbilhonante negatividade". Significar é obedecer (de ob-audire ). O funcionamento da escrita ilumina simultaneamente a relação nocturna do espírito com o invisível: o vazio é uma plenitude porque o múltiplo ilude o desejo, escapa e é substituído por uma totalidade que promete o repouso (4) e com o visível, a concreção duma forma: Esta escrita dita "representativa" pareceu-me pertencer não à criação dum pensamento, mas à de um acto, de um trabalho realizado por um gesto da mão. Este gesto permite não dissolver, cair no estupor ou na loucura, criar uma actividade de representação e estabelecer um espaço em que, por pouco que seja, "eu" pode acontecer. Trata-se portanto do recurso a um movimento do corpo, que "faz entrar" no psíquico, ou ainda da impressão, de um traço graças ao qual se inscreve num objecto terceiro, (uma superfície), uma representação (5).

No começo, a tábua rasa é o momento em que somos confrontados com uma textura de vida, com um texto: nesse momento, um princípio organiza o impacte daquilo que me acontece, daquilo que se me oferece ou me acontece. Um princípio organiza o ompacte daquilo que me acontece sobre aquilo que recebi de conhecimento por herança. É isso o trabalho do originário. Liberta-nos do fascínio do original, do fascínio da "cena primitiva", dessa tentação sempre prestes a enganar-nos de procurar naquilo que se passou antes a explicação daquilo que agora é. Estudar e escrutar os actos do passado é descobrir sabedorias antigas em que se praticou já o trabalho do originário. São essas sabedorias que nos salvam dos tradicionalismos em voga.

É este vazio da repetição que, segundo Lévy-Strauss significa a significação (6). A repetição pois, como princípio da significação, de que testemunha a rima, a paronomase, a aliteração, etc., justificam o princípio deste texto, entendido como um jogo de significantes que se se cor-respondem. Bloco é uma matriz vazia de onde partem as várias moidelizações e derivações textuais. Forma totalmente vazia (de mensagem), esse primeiro significante poré,, não produz significância senão percorrendo, em zig-zag, é certo, os graus obrigatórios da mimese. A paranomase é um dos jogos de palavras que, operando com a obliquidade, dela extrai a variação significante da própria mimese. Dessa semiose introversiva resultam sentidos não pre-vistos nem sabidos antes, deslocados do sentido, que é a informação fornecida pelo texto ao nível mimético. O uso da paronomase, seja ela fónica ou paradigmática ("bloco, dizia, onde ecoa o eco da defrontação"; "ânsia, opressão, estacada pressa") sustenta-se "de uma lógica que abre para semelhanças e onde, na ruptura aberta pela sua conjunção nada se representa que pudesse passar por um significante" (7).

As palavras como que se chamam umas às outras, repetindo-se, através de afinidades fónicas, semânticas, sintagmáticas sem fim, referidas exclusivamente ao próprio movimento de "rotação dos signos" e ao turbilhão que os aspira. Neste movimento sem fim que leva o texto à deriva, à significância, lê-se, em filigrana, o desespero da cadeia significante que não consegue sedimentar no vazio, é o apelo de novo e em compromisso com a sobredeterminação mimética. Trabalho poético de motivação dos signos, é luta contra o acaso e contra a limitação do arbitrário.

Tirar do esquecimento ( aletheia ), da obscuridade, do silêncio e logo da inexistência as palavras, é isso criar, dar o ser: o logos coloca-se diante da preença e depõe, quer dizer, re-pousa, a coisa presente na presença. (...) Na medida em que o logos deixa estendido diante, como tal, aquilo que se estende-diante, desvela a coisa presente na sua presença. Ora, o desvendamento é a aletheia. Esta e o logos são uma e mesma coisa (8).

Só que na perspectiva de Ramos Rosa ou dos teóricos modernos da literatura, este processo de desvendamento das coisas (criação) deixou de ter uma origem religiosa (o homem é a medida de todas as coisas - Protágoras). Não encontramos aqui a posição mística que é a de saber se se pode nascer da palavra de um Outro: o poema é o que responde a esta questão. Ramos Rosa segue neste seu passo a teoria heideggeriana do "es gibt" (na dupla significação de "existe" e "isto dá"): onde há poema há palavra e isso dá a palavra. A poesia não nasce, gera. Ela é começo, alteridade que se coloca com uma tal necessidade que funda nomeando, sem que nada de exterior a ela a confirme ou autoriza. O poema é uma palavra dada ao homem. Escutando-a, podem-se tirar sentidos diversos, significações múltiplas, mas isso começa por um significante fundador que é o poema: Não há que procurar coisas espirituais, só há estruturas do vazio (9).

Que o texto é um conflito, di-lo de vários modos Ramos Rosa: "defrontação com a brancura da página", "ânsia", "opressão", "violência", como o dissera já Meschonnic: Um texto é um conflito, porque a linguagem (veicular, descontínua) é relação, distância (sempre já começada, mesmo no pictograma, do referente com o signo) e que a escrita é relação com esta relação, distância relativamente a esta distância, para reencontrar a participação com o mundo. Mesmo se este movimento é apenas um texto dentro da intertextualidade, é movimento para um referente através de um significante: em Raymond Russel , ou o H em "Les Travailleurs de la mer". Mas como a escrita é inteiramente interior à própria linguagem, vive de ser uma contradição e que é contradição também para uma posição crítica, instrumentos conceptuais: a forma-sentido, o espaço para-gramático .

O que este conflito denuncia é concretamente o trabalho de formalização de figurabilidade que começa com a negatividade: a simbolicidade é apenas o Ser-simbólico do Simbólico: ela é simultaneamente o começo e o fim da simbolização que nunca acaba e necessita sempre da lei, isto é uma negação como determinação, a negação por excelência: "Não matarás" (10).

Mas, se a negação for, como pretende Chomsky, por exemplo, apenas uma das muitas possíveis transformações de superfície? O Trabalho sobre a estrutura de profundidade da linguagem é "tautológico, simples, separado e repetitivo"? Des-dita, forma de ausência, criação da ausência pela não-afirmação, e por isso mesmo lugar do múltiplo. Lugar da rarefacção do dito (enunciado) da língua, da aparição do dizer (enunciação), vazio criador do possível narrativo: "Entre a indeterminação da possibilidade e a vertigem dela"?

Da lacuna, lugar vago, vazio, se desenha o horizonte da expectativa do leitor, contrariando a conexão ordinária que ele está habituado a estabelecer com as coisas e o mundo. Trabalho de negação também - produção de espaços vazios estimulantes de criação. Entre a palavra e o silêncio, uma poesia concreta? (11) Algo como o trabalho do sonho, composto por condensações e deslocações. A condensação não é uma compressão que seria o modelo reduzido ou a projecção ponto por ponto do pensamento do sonho, mas uma condensação por omissão, uma restituição essencialmente lacunar. Manifesta-se no descentramento do sonho, sobretudo em relação à palavra essencial, como a palavra "botânico", no sonho da monografia botânica: o que opera é a trasnferência das intensidades psíquicas dos diferentes elementos do sonho e a sua deslocação: aquilo que mais fala é a letra do discurso.

A estratégia do signo (representação, na tradição logocêntrica ocidental) consiste em instaurar-se como presença de uma ausência.

A escrita desmascara esta estratégia, a operação negadora dos signos, negando-a (representando-a). Efectivamente, a escrita é representação de representação, quer dizer desconstrução activa do signo no que ele tem de ilusão representativa: instaurar-se como presença de uma ausência, significante de um significado. Através desta operação, o signo torna-se apenas em traço significante de um significante. A escrita é entaão um combate contra a ilusão da linguagem: toda a imagem representada no seu papel de imagem (de ídolo), quer dizer, na sua inadequação mais fundamental: Mas o discurso que significa também o impossível do empreendimento linguístico - não é aquilo a que se chama uma escrita (12).

Representar uma forma, encontrar a palavra que nomeia as coisas e afasta delas, é essencialmente uma operação de (de)limitação, logo de ordenação do caos. Astucioso princípio de mimese: a significância imprime-se, exprime-se obliquamente á língua, sempre ameaçada pelo regresso ao sentido: Se a hipótese dum caos primeiro não se deve reter, como não se deve reter a hipótese de uma harmonia preestabelecida, sendo um e outro assintóticos e teóricos, não é menos verdade que o caos e a harmonia constituem dois modos limite de existência para os quais é possível tender (13).

Parece, pois determinante para a sobrevivência psíquica do sujeito esta arrumação do caos, um mínimo de chão a que agarrar-se. A inscrição de uma forma, traça e marca uma diferença que lhe permite resistir à fragmentação insuportável e à morte.

O estilo exprime o protesto, a vinganç, a permanância do Eu ideal confrontado com os constrangimentos que o superego tenta impor ao Eu: O estilo funciona em relação à escrita como a figuração simbólica em relação ao sonho: permite contornar as duas censuras (...) realizar o desejo, inscrever no texto os vividos corporais. Determinadas figuras de estilo retiram a sua força das suas referências a sensações ou a uma simbólica corporal (14).

O estilo reintroduz a mensagem simbólica na língua convencional, através das ténicas que esta fornece. Não admira que os estilistas e os teóricos do estruturalismo da linguística tenham caracterizado a mensagem através da metáfora e da metonímia, que correspondem ma língua convencional à semelhança e à contiguidade, fundamentais na expressão simbólica. O poder do estilo reside naquilo a que D. Anzieu chama a ilusão simbólica. A criança que em cada adulto dorme, aceita mal, depois de ter crescido e ter aprendido a falar segundo o código da linguagem materna, o arbitrário que liga o significado ao significante, conservando a nostalgia dos sistemas de comunicação infra-linguísticos e da relação simbólica entre os signos e os seus referentes. A ilusão simbólica é o sonho de uma língua em que a palavra se assemelhe à coisa ou seja parte constitutiva dela.
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>A noção de autonomia

(1) J. Baudrillard , L´échange symbolique et la mort . Paris, Gallimard, 1970, p. 337.

(2) Paul Beauchamp. L'Un et l'Autre Testament . Paris, Seuil, 1976, p. 192.

(3) Michel Seres, Genèse, Paris, Grasset/Fasquelle, 1982, p. 221.

(4) P. Beaucahmp, op. cit. , p. 151.

(5) M. Enriquez, "L'indicible et l'écriture", Topique. Revue Freudienne , 21, 1978, p. 53.

(6) Lévy- Strauss, Le cru et le cuit - Mythologiques, Paris, Plon, T. I, 1964, p. 46.

(7) P. Marie, J. M. Prieur, "Freudaineries" in Folle verité. Verité et vraisemblance du texte psychotique, Paris, Seuil, 1978, p. 86.

(8) M. Heidegger, Logos", in Essais et Conférences , Paris, 1968, p. 267.

(9) Michel de Certeau, "La folie de la vision", in Esprit , Junho 1982, p.99.

(10) Krémer-Marietti, op. cit., p. 218.

(11) Ana Hatherly, "Notas para uma teoria do silêncio como negação", in Jornal de Letras , nº 10, p. 12.

(12) Julia Kristeva, in Folle verité, op. cit., p. 119.

(13) M. Enriquez, art. cit., p. 53.

(14) Didier Anzieu, "Les traces du corps dans l´écriture", in D. Anzieu et al., Psychanalyse et langage, pp. 181-184. Cf. Ella Sharp, "Mécanismes du rêve et procédés poétiques", 1937, trad. franc. Nouvelle Revue de Psychanalyse , nº 5, 1972, pp. 101-114.


http://www.triplov.com/poesia/ramos_rosa/jam/palavra_silencio.htm

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

VIAGEM





O vento sopra e o barco se move,
levará para longe as distancias
quando aportar,
vem caminhando, soletrando o tempo
enredado pelos cabelos do vento,
vem lambendo os olhos das pedras
violando as areias do mar
Mas quando chegar apenas encontrará
entre eu e a placenta
nessa resma de resinas
esse mendigo cais de espumas.


ARMIA DE ARMIA

domingo, 5 de setembro de 2010

O Amor no Éter


imagem revistaecologico.com.br






Adélia Prado



Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos
mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.



fonte:http://br.oocities.com/edterranova/adelia11.htm

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Poema de la Cantidad










Jorge Luis Borges


Pienso en el parco cielo puritano
de solitarias y perdidas luces
que Emerson miraría tantas noches
desde la nieve y el rigor de Concord.
Aquí son demasiadas las estrellas.
El hombre es demasiado. Las innúmeras
generaciones de aves y de insectos,
del jaguar constelado y de la sierpe,
de ramas que se tejen y entretejen,
del café, de la arena y de las hojas
oprimen las mañanas y prodigan
su minucioso laberinto inútil.
Acaso cada hormiga que pisamos
es única ante Dios, que la precisa
para la ejecución de las puntuales
leyes que rigen su curiosos mundo.
Si así no fuera, el universo entero
sería un error y un oneroso caos.
los espejos del ébano y del agua,
el espejo inventivo de los sueños,
los líquenes, los peces, las madréporas,
las filas de tortugas en el tiempo,
las luciérnagas de una sola tarde,
las dinastías de las araucarias,
las perfiladas letras de un volumen
que la noche no borra, son sin duda
no menos personales y enigmáticas
que yo, que las confundo. no me atrevo
a juzgar la lepra o a Calígula.

terça-feira, 16 de março de 2010

POEMAS DE GIBRAN KHALIL GIBRAN






AMAI-VOS


GIBRAN KHALIL GIBRAN


Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.

Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.

Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.

Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.

Cantai e dançai juntos,
e sede alegres,

mas deixai
cada um de vós estar sozinho.

Assim como as cordas da lira
são separadas e,
no entanto,
vibram na mesma harmonia.

Dai vosso coração,
mas não o confieis à guarda um do outro.

Pois somente a mão da Vida
pode conter vosso coração.

E vivei juntos,
mas não vos aconchegueis demasiadamente.

Pois as colunas do templo
erguem-se separadamente.

E o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro.








O AMOR



E alguém disse:
Fala-nos do Amor:

- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem
vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz
poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos
E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais frágeis
que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo
para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser
o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos
do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes
o coração da Vida.

Mas, se no vosso medo,
buscais apenas a paz do amor,
o prazer do amor,
então mais vale cobrir a nudez
e sair do campo do amor,
a caminho do mundo sem estações,
onde podereis rir,
mas nunca todos os vossos risos,
e chorar,
mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor só dá de si mesmo,
e só recebe de si mesmo.

O amor não possui
nem quer ser possuído.

Porque o amor basta ao amor.

E não penseis
que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos escolher,
marcará ele o vosso curso.

O amor não tem outro desejo
senão consumar-se.

Mas se amarem e tiverem desejos,
deverão se estes:
Fundir-se e ser um regato corrente
a cantar a sua melodia à noite.

Conhecer a dor da excessiva ternura.
Ser ferido pela própria inteligência do amor,
e sangrar de bom grado e alegremente.

Acordar de manhã com o coração cheio
e agradecer outro dia de amor.

Descansar ao meio dia
e meditar no êxtase do amor.

Voltar a casa ao crepúsculo
e adormecer tendo no coração
uma prece pelo bem amado,
e na boca, um canto de louvor.


fonte:ttp://www.paralerepensar.c
om.br/gibran.htm

domingo, 14 de março de 2010

POESIA DE WALT WHITMAN







A TERRÍVEL DÚVIDA DAS APARÊNCIAS


WALT WHITMAN



Da terrível dúvida das aparências,

da incerteza afinal de que possamos estar iludidos,

de que talvez a confiança e a esperança não sejam afinal senão especulações,

de que talvez a identidade para além do túmulo seja apenas uma linda fábula,

de que talvez as coisas que observo, os animais, plantas, homens, colinas, águas brilhantes a fluir,

o céu do dia e da noite, cores, densidades, formas, talvez tudo seja (como sem dúvida é) apenas aparições, e a coisa real ainda esteja por conhecer

(quão frequentemente se desligam de si mesmas como se para me confundir e zombar de mim!

quão frequentemente penso que não sei nem homem nenhum sabe nada a respeito delas),

talvez me parecendo aquilo que são (como sem dúvida parecem) no meu presente ponto de vista e podendo revelar-se depois (como naturalmente poderiam) como não sendo nada daquilo que parecem, ou nada enfim, a partir de pontos de vista totalmente diferentes;

para mim essas e outras questões semelhantes são de algum modo respondidas pelos meus amantes, meus queridos amigos,

quando aquele que eu amo viaja comigo ou se senta segurando longamente minha mão,

quando o ar sutil, o impalpável, o sentido que as palavras e a razão não detêm, nos cercam e nos perpassam,

então me sinto invadir por uma sabedoria indizível, inaudita, e fico em silêncio, e não me falta mais nada,

não posso resolver a questão das aparências ou a da identidade para além do túmulo,

mas caminho ou me sento, indiferente, e estou satisfeito;

ele, a segurar minha mão, me satisfez completamente.




tradução: Renato Suttana
fonte:http://www.arquivors.com/whitman1.htm

sábado, 13 de março de 2010

O CORVO






EDGAR ALLAN POE

tradução de FERNANDO PESSOA




Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."


Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".



E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.


A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.



Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."


Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.



E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".



Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".



Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".



Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".



Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!



Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".


"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".


"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".


E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!





fonte:http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/trad/921.html

sexta-feira, 12 de março de 2010

Do Livro do Desassossego








Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/


1.


"O coração, se pudesse pensar, pararia."
"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do
abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma
prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis,
porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao
que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao
que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até
mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e
canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que
me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro
dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se
não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."
* * *
6.
"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como
sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a
substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de
milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança
sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo
mais porque vivo maior."
* * *
7.
"Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os
patrões abstractos do mundo."
"Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo
tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um
pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar -
ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o
dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das
estrelas."
* * *

segunda-feira, 8 de março de 2010

A MOSCA








Vou ter de te matar de novo.
Te matei tantas vezes, em Casablanca, em Lima,
em Cristianía,
em Montparnasse, numa estância do partido de Lobos,
num prostíbulo, na cozinha, em cima de um pente,
no escritório, nesta almofada,
vou ter de ter matar de novo,
eu, com minha única vida.
JULIO CORTÁZAR

(em "Papéis Inesperados")

MAR SONORO



Sophia de Mello Breyner


Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
e tão fundo intimamente a tua voz
segue o mais secreto bailar do meu sonho
que momentos há em que eu suponho
seres um milagre criado só para mim.

domingo, 7 de março de 2010

UM CEGO



Jorge Luiz Borges





Não sei qual é a face que me mira
quando miro essa face que há no espelho;
e desconheço no reflexo o velho
que o escruta com silente e exausta ira.
Lento na sombra, com a mão exploro
meus traços invisíveis. Um lampejo
me alcança. O seu cabelo, que entrevejo,
é todo cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
a superfície vã das simples coisas.
Meu consolo é de Milton e é valente,
porém penso nas letras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver meu rosto
saberia quem sou neste sol-posto.

Quem me Dera que eu Fosse o Pó da Estrada



Fernando Pessoa


Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
e que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
e que as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
e tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
e que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que ser o que atravessa a vida
olhando para trás de si e tendo pena ...

(Alberto Caeiro - XVIII)

segunda-feira, 1 de março de 2010

TRIGAIS COM CORVOS BRANCOS





Onde encontrar os corvos brancos
entre as geleiras dos nervos da manhã sanguínea?
A paleta, a palavra decerram as pápebras geladas
quando a arte mancha, escorre
o tempo das tintas,
com as águias que vibram
sob o tempo da morte...


Édito